Trazida com os escravos pelo conquistador europeu, a música do Reino de Aruanda na América se libertou e, por meio da fé, emaranhou seu destino ao novelo de crenças e culturas do Novo Mundo. No Brasil, uma variedade de credos e práticas rituais assemelhadas, porém diferentes entre si, compõe o amplo painel das tradições religiosas embaladas ao ritmo dessa musicalidade.

Desde o Brasil Colonial até fins do Império, o conhecimento e a prática dos rituais embalados ao ritmo do batuque africano foi reduzido à condição de superstição anímica, sem outro fim do que apaziguar os humores de uma população escrava cada vez maior.  Foram então encontradas formas sincréticas de representação ritualística, que manifestassem as milenares divindades africanas no contexto do panteão católico, imposto pelo branco escravizador. E porque os africanos, quando fugiam do cativeiro, às vezes encontravam abrigo nas aldeias indígenas, não tardou para que uma variedade de etnias locais, no litoral e depois no interior, celebrassem nos primeiros Ritos de Caboclo a comunhão mística entre devoções de dois continentes.

Orixás do Novo Mundo

No Século XIX, o povo brasileiro, já desligado da metrópole portuguesa, começa a despertar para aquilo que viria a ser a sua alma, sua identidade de nação. “Brasil, de um sonho eterno seja símbolo, o lábaro que ostentas estrelado”, e todos se esforçavam para expressar brasilidade. Com o fim de atender a esta demanda, também foram invocados deuses africanos e ameríndios, que por meio de renovados rituais se fundiram aos seus pares ibéricos, mediterrâneos e semitas. Sob o sol do Novo Mundo, uma colorida procissão de religiões multirraciais espalhou-se pelo país, desde os centros urbanos até os mais recônditos lugarejos do dilatado interior. 

Abrigados no sincretismo católico, descendentes mestiços, assim como os de outro oprimido, o índio, e cortejados por uma burguesia emergente ávida de milagres, os infatigáveis atabaques e a sua veneração começaram a atrair a atenção de intelectuais, médicos, advogados, políticos e militares.

É bem verdade que o movimento muito se beneficiou da adesão em massa dos “nacionais”, a população mestiça liberta, abolicionista e republicana, que percebeu a oportunidade de erradicar, de uma só vez, a escravidão e os privilégios imperiais. A partir daí, na República do Brasil não seria mais obrigatório ser católico para ter algum tipo de fé ou manifestá-la. 

Apesar disso, por algum tempo as religiões afro-brasileiras ainda foram combatidas por setores conservadores da sociedade da época, que viam na liberdade de expressão dos rituais afrodescendentes uma ameaça ao modo de vida escravocrata. E até mesmo perseguições ocorreram, promovidas por uma espécie de preguiçosa, lânguida e extemporânea inquisição tropical. Mesmo assim, o pulsar da fé não abrandou e acabou por se impor. 

Terreiros, tendas e mesas brancas

Na virada do Século XX o florescer do Espiritismo Kardecista, trazido da França por aristocratas maçons contribuiu para que, mais tarde, as atenções se voltassem à variedade das religiões afro-brasileiras e seus rituais de incorporação e transe. Terreiros, tendas e centros de mediunismo multiplicaram-se, dando origem à uma infinidade de cultos regionais, reunindo sob o mesmo teto a feitiçaria européia, a pajelança e o xamanismo, passando pelo catolicismo popular e o messianismo milagroso. Candomblé, Tambor de Mina, Catimbó-Jurema, Tambor de Xangô, Batuque ou Umbanda são apenas algumas das inumeráveis denominações que, ao longo de cinco séculos, contribuíram para a construção de um ideário religioso essencialmente brasileiro.

De iconografia inspiradora, tomada aos santos padroeiros católicos, acrescida de numeroso panteão africano e indígena, não menos inspirador, a religiosidade Afro-brasileira sobrevestiu seus ritos e cerimônias com imagens de Caciques, Pretos-velhos, Curumins, Sertanejos, Sereias, Boiadeiros, Ciganos, Marinheiros, Exus e Pombagiras. Sempre cavalgando a mediunidade fraterna, compartilhada sem diferenciação entre pessoas das mais variadas raças, culturas, crenças e condições sociais, os ritmos e rituais das religiões afro-brasileiras disseminaram no país uma grande variedade de nações devocionais.

Além do mais, engana-se quem acredita que o sincretismo religioso africano no Brasil foi meramente um artifício do escravo para ocultar suas divindades sob o manto dos santos da Igreja Católica. As religiões africanas que prosperaram no Brasil eram politeístas, e adotar outros deuses é algo natural no politeísmo, uma vez que com isso a religião original é enriquecida. A crença nas imagens do catolicismo somada à devoção aos orixás, voduns, inquices e encantados partiu de uma atitude sincera do afrodescendente, um sentimento religioso autêntico que até hoje permanece.

Tempo de resgate

Apesar de tudo, as religiões nascidas no Brasil a partir da herança africana, influenciadas pelo catolicismo, pela cultura indígena e pelo espiritismo kardecista, ainda hoje ocupam um lugar secundário na sociedade, muitas vezes desprezadas e até mesmo estigmatizadas. Enquanto depositário de uma tão vasta quanto complexa rede de manifestações culturais, o legado dos rituais afrodescendentes repousa quase que exclusivamente na tradição oral, e em festividades sazonais-regionais que, aos poucos, vão se degradando frente à avalanche de informações despejadas pela mídia globalizante.

Culturalmente, a influência africana no Brasil é enorme, constituindo uma das pedras angulares da civilização brasileira. Música, literatura, teatro, dança, cinema, culinária, estética – torna-se difícil pensar o Brasil sem levar em conta o patrimônio herdado dos povos africanos. Todavia, à medida em que avança a conectividade das redes sem fio, grande parte deste legado vai desaparecendo.

O resgate e a preservação de tradições religiosas de origem afrodescendente no Brasil, mais do que um direito é um dever para com os nossos antepassados e o legado de ensinamento por eles deixado. 

Mbuntu

Numa antiga forma do idioma Banto, ainda falado em algumas regiões da África Subsaariana, o termo ‘ubuntu’ ou ‘mbuntu’ significa: generosidade, solidariedade, compaixão pelos mais necessitados e o desejo sincero de felicidade e harmonia entre todos os indivíduos. Ubuntu define um indivíduo em termos de seus relacionamentos com os outros. 

“Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”, afirma um ditado africano ancestral. Ao espírito mbuntu é atribuída toda a alegria, o otimismo e a confiança dos africanos em seus ritos mágicos e nas tradições morais dos antepassados. Rituais são transmitidos de geração em geração desde tempos imemoriais e, como constatamos na rica diversidade da herança afrodescendente, foram trazidos ao Brasil para conquistar corações e fazer seguidores.

A música de Aruanda na voz de Rita Benneditto

A Música do Reino de Aruanda
A cantora Rita Benneditto. Foto: Marcos Morteira

Rita Benneditto é aquele tipo de cantora cuja voz é capaz de encantar aos orixás e fazer até os espíritos mais céticos se curvarem ante a presença das divindades. Nascida maranhense, cedo conheceu os segredos dos rituais ameríndios, demonstrando natural aptidão para a interpretação dos pontos de umbanda, a musicalidade que nos terreiros conduz os médiuns ao transe e à incorporação. Prova disso é sua adaptação do ponto de Cabocla Jurema, no qual o público que a acompanha tem a nítida sensação dela estar incorporada pela poderosa entidade.

Entre seus maiores sucessos está a seleção ‘Tecnomacumba’, que reúne músicas religiosas afro-brasileiras com origem no candomblé, na umbanda, na quimbanda e no tambor de mina – ritual herdado dos escravos trazidos do Benin e característico do norte do Brasil.

No repertório, composições de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Dorival Caymmi, entre outros. Através dele Rita percorre os pontos de terreiro, desde a saudação aos Exus, obrigatória na abertura dos rituais da umbanda, passando pela reverência ao variado panteão dos orixás, até alcançar o final alegre, cheio de esperança e vida das cerimônias religiosas afro-brasileiras. Tudo isso traduzido na linguagem da moderna música eletrônica contemporânea. 

Abram-se os caminhos para os mensageiros de Aruanda! 

Tecnomacumba – Rita Benneditto

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Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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