11 de Abril de 2020

Há seis meses eu sequer sabia que o Covid-19 existia. Agora, isso é o que vou reter como lembrança da minha primeira pandemia. O vírus se espalhou, derrubou economias e sistemas de saúde, afastou as pessoas de seus locais de trabalho e de seus amigos, e está abalando a humanidade em uma escala na qual a maioria das pessoas nunca havia testemunhado. Em breve, quase todo mundo terá conhecido alguém que foi infectado ou morreu.

A geração nascida entre o final da Segunda Guerra Mundial e os anos 1960 foi chamada de ‘baby boomer’. A expressão se refere à explosão demográfica mundial no pós-guerra, mas estará para sempre associada à bomba atômica. Então, como iremos chamar as crianças nascidas a partir de 2020? Vou chamar provisoriamente de ‘Corona-baby’. O mundo em que irão viver os Corona-babies será definido pelas escolhas que faremos nos próximos meses.

Os cientistas concordam que uma pandemia global nessa escala era inevitável. Nos últimos anos, centenas de especialistas em saúde alertaram sobre essa possibilidade. Em outubro de 2019, o Johns Hopkins Center for Health Security aventou a hipótese do que poderia acontecer se um novo Coronavírus varresse o planeta. Pouca gente prestou atenção e a hipótese se tornou realidade. A História quase nunca endossa o “se”.

Mais transmissível e fatal do que a gripe sazonal, o Covid-19 também é mais furtivo, se espalhando de um hospedeiro para outro por vários dias antes de revelar seus sintomas. Para conter esse patógeno, as nações devem desenvolver um teste e usá-lo para identificar pessoas infectadas, isolá-las e rastrear aquelas com quem tiveram contato. Foi o que a Coréia do Sul, Cingapura e Hong Kong fizeram com enorme eficiência. Foi o que a Itália, a Espanha e os EUA não fizeram. Em um mês crucial, quando o número de casos nos Estados Unidos atingiu dezenas de milhares, apenas algumas centenas de pessoas foram testadas. O fato de uma potência biomédica falhar completamente em aplicar um teste de diagnóstico causa uma sensação bastante desagradável. Agora o número de óbitos está aí, desafiando os que insistiram em dizer que tudo não passava de uma tramoia da mídia, confiantes na invisibilidade dos infectados assintomáticos. Corpos são difíceis de passar desapercebidos.

O Brasil bem que tentou se defender, mas o presidente não ajuda. Depois de chamar a pandemia de ‘gripezinha’, cometeu o disparate de contradizer o Ministro da Saúde, que então buscava conter o contágio por meio do único recurso conhecido: o isolamento. Somente graças ao bom senso de outros dirigentes brasileiros, além do ministro, é claro, é que a tragédia nesse belo e subdesenvolvido país não está sendo muito pior.

De um modo geral, a maioria dos países não conseguiu rastrear com precisão a propagação do vírus, e com isso os hospitais não tiveram a chance de executar seus planos emergenciais, se preparando e alocando mais recursos, solicitando suprimentos extras, convocando pessoal ou designando instalações específicas para lidar com os casos do Covid-19. Nada disso aconteceu. Os sistemas de saúde foram repentinamente confrontados com uma doença grave e contagiosa, que se espalhou sem rastreamento. Hospitais ficaram sobrecarregados. Equipamentos básicos de proteção, como máscaras, aventais e luvas, começaram a escassear, assim como os ventiladores que fornecem oxigênio aos pacientes. Então, os leitos das UTIs começaram a superlotar. 

Os países mais ricos se apressaram em garantir seus estoques. Neles, alguns hospitais adquiriram grandes quantidades de suprimentos. Da mesma forma, por toda parte consumidores em pânico estocaram sem necessidade grandes quantidades de álcool, máscaras cirúrgicas, medicamentos e papel higiênico, elevando os preços e desabastecendo as populações de menor poder aquisitivo. O caso mais emblemático é o da Hidroxicloroquina, uma substância empregada no combate à malária e vista com desconfiança pelos infectologistas, por nunca ter sido testada em pacientes do Covid-19. No Brasil isso ocorreu, em parte, porque o atual governo é uma espécie de cemitério do conhecimento científico. Desde 2019 o setor da Educação no país é dirigido por gente que acredita que a Terra é plana como uma pizza, e o investimento em ciência uma bobagem de maconheiros comunistas.

Até certo ponto, o horizonte de curto prazo da pandemia no Brasil está definido, porque o Covid-19 é uma doença que se instala de forma lenta, e se desenvolve de maneira longa e agonizante. As pessoas infectadas há alguns dias só começarão a apresentar sintomas agora, mesmo que tenham se isolado nesse meio tempo. Algumas dessas pessoas entrarão em unidades de tratamento intensivo no mês que vem. No momento em que escrevo, o país tem pouco mais de 20 mil casos confirmados, mas o número real deve estar entre 100 e 150 mil, dada a escassez de testes que definam este cenário. Aqui, os profissionais de saúde já lidam com sinais preocupantes: falta de equipamentos e insumos, aumento do número de pacientes, além de médicos e enfermeiros sendo infectados.

Há um mês que a Itália e a Espanha emitem avisos sombrios sobre esse futuro. Lá, os hospitais já estão sem espaço, suprimentos e funcionários. Incapazes de salvar a todos, os médicos são forçados ao impensável: decidir quais pacientes têm maior probabilidade de sobreviver. Em meio a isso, um estudo divulgado em março pelo Imperial College of London concluiu que, se a pandemia perder o controle, os leitos dos hospitais na maioria dos países estarão ocupados até o final de maio. Até o final de junho haverá 15 vezes mais pacientes com Covid-19 do que leitos. Até o final do verão europeu a pandemia terá matado diretamente 2,5 milhões de pessoas, além daqueles que morrerão indiretamente, pois os hospitais não conseguirão atender a série habitual de outros pacientes, como os acometidos por derrames ou acidentes de carro, por exemplo. 

Este é o pior cenário e para evitar isso três coisas precisam acontecer. A primeira e mais importante é a produção em grande escala de máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção individual. Se os profissionais de saúde não permanecerem saudáveis, o sistema de saúde entrará em colapso. A segunda necessidade premente é a aplicação massiva dos testes de Covid-19. Esses testes demoraram a acontecer devido a diferentes deficiências, entre elas a de máscaras para proteger as pessoas que os administram, de kits para extrair das amostras o material genético do vírus, e de pessoas treinadas para fazer os testes. Muito dessa escassez se deve a cadeia de suprimentos afetada pela própria pandemia, mas no caso do Brasil a falta de pessoal pode ser colocada na conta dos terraplanistas mal educados. A terceira necessidade urgente é o distanciamento social. Pense desta maneira: agora existem apenas dois grupos de pessoas. O grupo que inclui todos os envolvidos no combate à doença e o grupo que é constituído pelos demais. Este último deve fazer a sua parte, isolando-se fisicamente das outras pessoas para evitar a transmissão da doença.

‘Game Over’

Mesmo uma resposta eficiente dos sistemas de saúde não vai acabar com a pandemia. Enquanto o vírus persistir em algum lugar, sempre existirá a chance de um viajante infectado reacender novos focos em países que já extinguiram seus incêndios. Isso está acontecendo na China, Cingapura e em outros países asiáticos que pareciam ter o controle da situação. Nessas condições, existem três possíveis finais para o drama do Covid-19. Um é muito improvável, outro é muito perigoso e o terceiro, muito prolongado.

O primeiro final é quando todas as nações conseguem, simultaneamente, reduzir a propagação da doença, como aconteceu no caso da SARS original, em 2003. Dada a disseminação da pandemia de Covid-19 e a gravidade com que ocorre em muitos lugares, as chances de controle simultâneo parecem extremamente pequenas.

O segundo é aquele em que o vírus faz o que as pandemias passadas de gripe fizeram: se espalha, deixando para trás um número suficiente de sobreviventes imunes para deter a propagação. Esse cenário de ‘imunidade do rebanho’ seria rápido mas cobraria um preço terrível. O Covid-19 é mais transmissível e fatal do que a gripe, e provavelmente deixaria muitos milhões de cadáveres e um rastro de sistemas de saúde devastados. O Reino Unido inicialmente considerou essa estratégia, mas voltou atrás quando os modelos estatísticos revelaram seus possíveis efeitos.

O terceiro cenário é aquele em que a humanidade pratica uma longa queda-de-braço com o Covid-19, eliminando surtos aqui e ali até que uma vacina possa ser produzida. Esta é a melhor opção, mas também a mais longa e mais sofrida. Para ter uma ideia, imagine as consequências de períodos sazonais de quarentena ao longo dos próximos dez anos.

Para começar, tudo depende de se produzir uma vacina. Se fosse uma pandemia de gripe, seria mais fácil. Os cientistas têm experiência em fabricar vacinas contra a gripe e fazem isso com razoável eficiência todos os anos. Mas ainda não existe vacina para o Covid-19. Então, a pesquisa terá de começar do zero. Nessa circunstância, é possível que a pandemia faça parte da vida das pessoas por pelo menos um ano, se não por dois. Se a atual rodada de medidas de distanciamento social funcionar, o contágio pode diminuir o suficiente para que as coisas voltem a ter uma aparência de normalidade. As empresas voltarão a abrir e nos bares as pessoas poderão comemorar. As escolas vão reabrir e os amigos vão poder se reencontrar. Contudo, à medida que isso ocorrer, o contágio também voltará. Isso não significa que a sociedade deve estar em bloqueio contínuo, mas precisaremos estar preparados para fazer novos períodos de isolamento.

A frequência, duração e época dos futuros isolamentos vão depender de duas características do Covid-19, ambas atualmente desconhecidas. Em primeiro lugar, a sazonalidade. Os Coronavírus tendem a ser infecções de inverno, que diminuem ou desaparecem no verão. Isso também pode ser verdade para o Covid-19, mas as variações sazonais podem não diminuir suficientemente a espiral do contágio enquanto ainda houver um número significativo de hospedeiros não imunizados. “Todo mundo está esperando para ver o que vai acontecer no verão do Hemisfério Norte”, observa a Doutora Maia Majumder, da Harvard Medical School e do Boston Children’s Hospital.

Em segundo lugar vem a duração da imunidade. Quando as pessoas são infectadas pelos Coronavírus humanos mais leves, que causam sintomas semelhantes às gripes dos meses frios, elas permanecem imunes por menos de um ano. Por outro lado, os infectados pelo SARS original, que era muito mais letal, permaneceram imunes por mais tempo. Supondo que o Covid-19, em termos de imunidade, se situe em algum ponto entre um e outro, as pessoas que se recuperarem agora poderão ficar protegidas por alguns anos. Mas para confirmar isso, os cientistas precisarão desenvolver testes sorológicos mais precisos, que identifiquem os anticorpos que conferem imunidade. Eles também precisarão confirmar se esses anticorpos realmente impedem as pessoas imunizadas de transmitir a doença. Se tudo isso se confirmar, os cidadãos imunes poderão voltar ao trabalho, cuidar dos mais vulneráveis e manter a economia em movimento durante os futuros períodos de distanciamento social. Os cientistas poderão usar os intervalos entre as crises para desenvolver drogas antivirais, e os sistemas de saúde vão poder se preparar melhor. Com isso, não haverá razão para que no futuro a humanidade se deixe apanhar novamente nas armadilhas do Covid-19 e, portanto, não haverá razão para que as medidas de isolamento sejam tão radicais quanto agora. Poderemos manter escolas e empresas abertas o maior tempo possível, fechando-as rapidamente quando os alarmes soarem, para depois abri-las novamente quando os infectados forem identificados e isolados.

Mas mesmo com a descoberta de uma vacina é improvável que o Covid-19 desapareça completamente. A vacina precisará ser atualizada à medida que o vírus evoluir, e as pessoas deverão ser imunizadas regularmente, como acontece com a gripe. No futuro talvez isso acabe se tornando tão comum que, embora exista uma vacina, grandes contingentes da geração dos ‘Corona-babies’ não sejam afetados, esquecendo o quão dramaticamente seu mundo foi moldado pela pandemia de 2020.

Máscara anti-gás utilizada nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial
Foto: autor desconhecido
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Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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