Agora inclino-me diante do Oráculo da Luz e das Sombras, oráculo d’Aquele que habitando em todas as coisas é diverso de todas as coisas.
Aquele a quem todas as coisas não conhecem é feito de todas as coisas. (Brihadarankaya Upanishad III, 7)
No alvorecer do Século XX duas armadas vão se enfrentar. De um lado o Japão emergente, ainda feudal mas mecanizado por máquinas à vapor; com casamatas blindadas, disciplina samurai e canhões de recuo com dezesseis polegadas de boca. Do outro, a Europa tardiamente romântica dos czares hemofílicos.
O desfecho é o esperado. A tempestade incandescente de aço oriental aniquila a outrora punitiva expedição, que há seis meses zarpara do Mar Báltico, com grande estardalhaço para por fim a uma longínqua e aborrecida disputa de territórios.
Ninguém duvida de que a derrota se deveu ao preparo físico de uns, à debilitada moral de outros e, é claro, ao providencial auxílio de culatras e couraças inglesas, especialmente fabricadas pela Vickers Dreadnought Cº, de Eaton, para clientes imperiais. Contudo, observadores daquela época – e ainda hoje – sempre insistiram em atribuir a supremacia do pavilhão solar à capacidade do seu almirante Togo em jogar o Xadrez, descobrindo no jogo secretas virtudes de estratégia militar.
Trata-se de uma evidente bravata de colunistas, sem outro fim senão o de amenizar as vergonhas de um fracasso naval. Mas o fato é que a notícia serviu, e serve, para promover na mente do homem comum a noção algo acadêmica de que o Xadrez é um jogo de fundamentos marciais. E até hoje muitos dos que sobre ele se debruçam, o percebem quase que exclusivamente através deste pobre aspecto.
O pesadelo volante do Século XX prossegue. Na Europa e depois em toda parte, enxadristas de habilidade variável se aventuram por tabuleiros cada vez mais sangrentos e inúteis. A maioria deles vítimas muito mais de suas idiossincrasias do que dos eventuais adversários – destacando-se aí a ilusão de que peões, bispos, cavalos ou torres possam ser equiparados às infantarias, divisões motorizadas e linhas de trincheiras destroçadas ao sabor de lances favoráveis ou jogadas infelizes.
Aos iniciados o Xadrez se apresenta como milenar instrumento mágico de combinações matemáticas, cuja finalidade é revelar, entre outras coisas, o grau de evolução possível dos jogadores no momento do jogo. E não será incorreto afirmar que na antiguidade mais remota a função lúdica fosse a de promover o encontro entre mestre e discípulo, cabendo a este último o direito de formular a pergunta antes do início do certame.
Em confirmação a esta e outras especulações advindas da esfera divinatória a origem do jogo é desconhecida ou oculta, embora a maioria das enciclopédias prefira recorrer ao costumeiro “perde-se na noite dos tempos”. Sabemos apenas que o Xadrez terá sido mencionado pela primeira vez há cinco ou seis mil anos na China, ou na Índia entre os vedas, e que foi trazido ao ocidente, ainda que inadvertidamente, na bagagem rudimentar de ambulantes indo-europeus. Devido aos inumeráveis ensinamentos ocultos em suas equações é natural que tenha servido de oráculo a babilônios e caldeus, enquanto que entre os faraós do Egito foi recebido como divina cartilha escolar.
Vem daí que a finalidade essencial do jogo não é, como apregoam certos manuais autodidatas, opor exércitos e travar batalhas. Ainda que a variável militar também esteja figurada entre os seus arcanos (representada, em geral, pela figura de um cavalo), esta constitui apenas uma parte do complexo mecanismo cósmico de oposição de forças, tão bem representado nos contrastes do tabuleiro. Além disso, o simples fato de abrigar num mesmo plano igual número de oponentes, com idênticas atribuições e direitos siameses, é suficiente para afasta-lo da órbita guerreira. O verdadeiro sentido do Xadrez é ser um espelho fiel do eterno confronto entre a luz e a sombra, sendo que a cada praticante é reservado o direito de escolher o lado que melhor lhe convém.
A DOUTRINA
Uma tal reunião de potências díspares só pode ter emergido das práticas ocultas nas profundezas da mística, isto é certo. Se nos permitirmos refletir de modo neutro e distanciado sobre a disposição dos contendores, suas virtudes e movimentos em jogo, poderemos eventualmente despertar para um estado de consciência que nos levará a reconhecer, para além do véu das aparências, o verdadeiro semblante de cada uma das divindades perfiladas – fiéis cumpridoras das decisões do jogador. Peões, bispos, torres, todos concorrem para a formação de um plano de correspondência orgânica entre o ente volitivo – o que Sou – e seu soma, o invólucro que o contém e que, afinal, é quem o conduzirá até o desfecho da partida, e a uma eventual resposta. Um organismo composto por quatro níveis (ou oitavas) de energia, que sobrepostos formam o veículo da presença de seu senhor no mundo. Dispostos em simétricos hemisférios à direita e à esquerda, como no cérebro humano, os integrantes do certame possuem atributos singulares, os quais não se confundem.
As Torres simbolizam a matéria física, tangível, e só podem deslocar-se em linhas ao fundo ou em paralelo com um determinado nível de profundidade do jogo; e podem trocar de lugar com o Rei se este não estiver sob ameaça e nada obstruir o caminho entre ambos. Os Cavalos são as peças correspondentes à porção animal do soma; relacionada ao elemento água e representada nos impulsos, nos desejos, no instinto. Seus caminhos são indiretos e, como os desejos, podem se sobrepor a qualquer outra consideração, o que nem mesmo ao Rei é permitido fazer. Os Bispos correspondem ao elemento ar, simbolizam a comunicação e o conflito; cruzam os diversos níveis de intersecção do oráculo em voláteis diagonais filosóficas, permitindo estabelecer, às vezes, certos níveis de compreensão subjetiva (ou alcance), porquanto seja esta sua principal finalidade no jogo. Todavia, devido à essa mesma característica de movimento, os bispos padecerão de uma deficiência natural. Ficarão para sempre limitados ao plano em que nasceram – a cor da casa onde iniciaram a partida.
Aquilo que conhecemos por Dama e consideramos a segunda peça em importância no Xadrez (certos manuais atribuem à Dama o valor 8, abaixo do Rei, que é 10), corresponde tão somente ao agente das decisões emanadas do jogador, que no tabuleiro tem por correspondência a figura do Rei (o representante da sua Presença no jogo). A Dama simboliza o servo diligente diante do Senhor, embora qualquer pedra sob a égide do soberano também o seja a seu modo. Entre os persas era chamada de “O General”, porque na batalha ficava ao lado do Rei. Só depois das cruzadas é que na Europa foi confundida com a estirpe dos Defensores da Rainha, ou seu exército particular.
A Dama movimenta-se em qualquer direção e ocupa posição central na casa idêntica à sua cor. Um aspecto curioso do seu proceder é que multiplica-se – obviamente mediante grande esforço e sacrifício, quando um de seus vassalos alcança os limites mais profundos da experiência e, por assim dizer, “reencarna” investido dos amplos poderes da Dama. Usa-se nessas ocasiões inverter uma torre já sacrificada para que o Peão retorne como “general”, o que não deixa de ser uma sugestiva metáfora sobre a transmutação da matéria. Apesar de tudo, assim como qualquer outra dentre suas divindades irmãs é dispensável e se removida a partida não cessará.
A maioria dos atuais estudiosos do Xadrez atribui erroneamente aos peões a condição de pobres escravos. Como em qualquer sociedade são numerosos e sempre instados a se sacrificarem pela preservação de indivíduos mais valiosos. Há mesmo quem defenda que um Bispo vale três peões. Contudo, visto a partir da finalidade do jogo, o significado do Peão é bem outro. Não bastará lembrar que ele é o único capaz de transformar-se em qualquer outra pedra, excluído o rei,ao atingir a derradeira etapa de compreensão, a oitava casa, num movimento conhecido por “coroação”. Refira-se ainda, que por ocuparem a linha à frente dos componentes que formam a correspondência corporal do jogador no tabuleiro, os peões estão além dos limites da matéria, das emoções, das deduções, ações e do próprio Amo corporificado na figura do Rei. Onde quer que estejam, ali estará representada a bandeira do seu senhor.
Este, por sua vez, nada pode além de contemplar. O agir é uma consequência dos ditames do jogo e dos seus pormenores – no mundo há regras. Apesar disso, a peça que o representa, o Rei, estará disponível à débeis tentativas de expressão, por se tratar de uma metáfora. Fora isso, a única função do Rei é estar presente.
AO DEUS SEM NOME
Pela singela razão do jogador estar representado sobre o tabuleiro, na origem do jogo houve por hábito atribuir-se à pedra correspondente o nome em particular de alguma divindade: Shiva, Bel, Mitra, Zeus, Hermes, Javé, qualquer um deles. Com o passar dos séculos os deuses acolhidos puderam transferir seus títulos a jogadores que por direito os reivindicassem. Depois disso, a popularização do jogo encarregou-se de nomeá-los simplesmente como o “Rei”. A certa altura da Alta Idade Média nas cortes católicas da Europa o título foi atribuído ao Papa.
Ao tempo do Imperador Augusto o deus das legiões era representado por um grifo: cabeça de galo, garras de leão, cauda de serpente; e respondia pelo nome de Arconte. Já havia sido um touro, em seguida foi o sol e depois o globo estelar que anuncia a aurora. Anos mais tarde converteu-se numa mandala sagrada e depois num condenado pregado à uma cruz. Esta profusão de imagens de divindades inesperadas deve ter provocado nas populações da antiguidade o fenômeno da misericórdia para com os deuses. E o governo, solidário com este autêntico sentimento de piedade popular, consentiu que no Panteão do Capitólio, em sua face voltada ao alvorecer, fosse erguido um pedestal. Sobre ele nunca seria colocada qualquer imagem e aos seus pés ordenou-se que escrevessem: Ao deus sem nome – na paciente expectativa da vinda de quem por direito reclamasse o lugar.
Pois este apurado senso prático de uma civilização que já não possuía espaço interior disponível a tudo o que não viesse da satisfação dos sentidos; este altar em honra da divindade inominada, incorpórea e, afinal, abandonada à própria ausência, é o mais próximo que a compreensão humana conseguiu chegar da Presença do Amo – que não é alguém nem é algo –, mas o próprio princípio incriado, intangível e onipresente; que ao mesmo tempo é tudo e é nada, e sem o qual nada há.
Diante da Presença do Amo desenrola-se o drama da existência e suas minúcias. A respeito disso a divindade nada pode fazer além de ali mostrar-se, dando condições à continuidade da partida ou o que quer que esta represente. Uma vez extinta a Presença o sortilégio desvanecerá.
A VIRTUDE OCULTA
Informa-nos o Livro da Precisão, que a primeira menção literária ao Xadrez está contida no romance persa Karnamak, escrito por volta do ano 600 d.C. e comemorativo às proezas militares de Artaxerxes. Reivindicação autoral que podemos considerar bastante surpreendente, visto que desde o Século VI antes de Cristo empenham-se os historiadores indianos em repetir que foi Sissa, um brâmane da corte de Balhait, o sábio responsável por demonstrar as virtudes da prudência, da persistência, da diligência e do conhecimento. Mais intrigante ainda é verificar-se que na China e na Birmânia, o Wei-Chi foi desde sempre o jogo favorito das classes educadas. E não surpreenderá se as razões deste debate milenar revelarem um cânone. Também não há de surpreender se tais argumentos se referirem a meras disputas de fronteira.
Tomada em conta a vertente de Balhait, reza a tradição que Sissa apresentou ao rei um tabuleiro com peças não muito diferentes das atuais: carros, cavalos, elefantes e conselheiros. O sábio explicou, então, que a batalha provaria melhor o valor da ponderação, ao invés dos ensinamentos fatalistas do Nard – conhecido hoje por Gamão – e no qual o resultado é sempre decidido pela sorte.
Assim como são conhecidos indícios de que entre piratas venezianos o Tarocchino de Paris (incluídos os arcanos maiores) fosse jogado a dinheiro, parece natural que se desenvolvendo num ambiente dominado por jogos de azar, o Xadrez tenha começado sob a influência dos dados.
Seis faces tem um dado. E a soma de quaisquer de suas faces em oposição é sempre igual a sete, como os dias da semana e os astros no céu. Por outro lado, o tabuleiro do Nard representa o ano. Tem vinte e quatro casas, porque são vinte e quatro as horas do dia. E está dividido em duas metades, cada qual com doze pontos, pois são doze os meses e os signos zodíacos. Desta forma, lançados os dados, estará determinada a ordem obediente às secretas engrenagens astronômicas e aos decretos da sorte boa ou má.
O brâmane advertiu o rei de que tal abuso da Ordem Divina é contrário aos preceitos da fé e deve ser evitado. Sua substituição por um certame de fundamentos militares deve ter soado conveniente.
Entre muçulmanos os jogos de azar são abominados. Maomé, entretanto, tolerava passatempos de guerra, conquanto não envolvessem a venda de sortes. Mais tarde, quando os adeptos do Islam invadiram a Pérsia, a atitude hostil de seus juízes em relação ao jogo incentivou a migração do Xadrez, desde a original vocação divinatória e mercurial até as atuais finalidades lúdicas de tendência belicista.
Prescreve uma passagem do Alcorão: “no que se refere a divertimentos um crente deve se limitar a seu cavalo, seu arco e suas mulheres”. Apesar disso, são os próprios califas os primeiros a se tornarem ardorosos aficionados do Xadrez. E começam a se perguntar se não seria possível encontrar nas palavras do Profeta um descuido que lhes permitisse abolir a proibição.
Atribui-se a Harum Al-Rashid, o ortodoxo, a virtude de ser o primeiro califa a proteger abertamente o Xadrez, favorecendo os bons jogadores e lhes concedendo pródigas pensões. Também sob o seu reinado o jogo foi considerado uma imagem da guerra, sendo possível praticá-lo como exercício mental, fonte de disciplina e táticas militares – ao invés de faze-lo por recreação, ânsia do lucro ou intenções ainda piores. Por esta via Al-Shafii, jurista do califa, pôde declarar a prática do jogo legal, desde que observadas certas condições, que hão de ser as seguintes:
“O jogo não será praticado com apostas e nenhum dinheiro será lançado em relação com ele. O jogo não deverá interferir com a prática regular da oração. O jogador deverá abster-se de linguagem exaltada ou inconveniente. O jogo nunca será praticado de olhos vendados e não servirá à adivinhação e à magia”.