A origem do nome Scarborough repousa sob os significados da palavra grega skaroi, “esfregar”, que foi empregada para dizer “desgastar”, no sentido de entalhar na pedra. Gravada na memória popular pelo sucesso de um hit da contracultura dos anos 1960, Scarborough Fair Canticle – a canção da feira (do festival) Skaroi emergiu de um passado megalítico, cercado de brumas, duendes e encantamentos, discretamente disfarçada sob o manto do amor perdido.

No século IV da Era Cristã Skaroi foi o nome de um posto militar romano de sinalização da costa em Angevin, no litoral norte da Inglaterra. No ano 960 d.C. uma pequena fortificação foi erguida em uma elevação próxima ao mar, que passou a ser chamada de The Scarborough – o burgo Skaroi.  Até o final do Século IX o lugar ainda tinha a fama de ser um recôndito remanescente da Idade da Pedra Polida. Havia por lá dólmens, altares sacrificiais e a veneração de certos animismos. Há, também, indícios de ter servido de abrigo a assentamentos da Idade do Bronze, mas a maioria desses testemunhos foi destruída em 1066, quando a região foi devastada pelo viking Godwinson, senhor de Falsgrave, a serviço do rei Harald III da Noruega.

Em 1155 o rei Henrique II recuperou Scarborough aos ingleses e construiu um castelo de pedra no promontório de Angevin. Em 1163 concedeu as cartas da cidade, permitindo que houvesse nas areias da praia um mercado. Ali passou a ocorrer anualmente a celebração de um festival lunar, e ao seu redor a consequente feira de troca de mercadorias levadas pelos que para lá se dirigiam. Com o tempo, o comércio promoveu a cidade e sua feira, que veio a se tornar lendária. Não será incorreto presumir que data dessa época, ou de um pouco depois, um dos mais famosos poemas medievais de feitiço e magia que se tem notícia – a canção da feira do burgo Skaroi.

A Canção da Feira do Burgo Skaroi
Mapa de Scarborough de 1908, com destaque para o promontório de Angevin (Castle Hill) onde se localizam as ruínas remanescentes do Burgo Skaroi.

A fábula

O poema corresponde a uma fábula tradicional de origem desconhecida. A fábula se refere ao encantamento lançado por um elfo para seduzir uma jovem. O feitiço é cantado no modo grego dórico, ou seja, na escala natural maior de Dó, começando com o segundo grau, Ré, e com isso alcançando as doces melancolias de um tom menor, sabidamente favoráveis às canções de amor. O poema se constitui da mensagem que o ser sobrenatural envia à sua amada, por meio de um mensageiro, indicando o que ela deve fazer para ir ter com ele. 

Como de costume nas antigas tradições, o sortilégio inicia com um convite, pois a magia somente entra na vida de uma pessoa se ela assim o desejar. Are you going to Scarborough Fair?  ‘Você se dirige à feira do burgo Skaroi?’ A si mesmo o encantamento responde: Yesterday holds memories in time…  ‘O passado guarda as memórias do tempo…’ Naturalmente, uma vez que o passado é o guardião dos segredos da alma.

Tudo leva a crer que esta frase foi o nome original da canção ao tempo em que ela foi criada, e o estribilho repetido em todos os versos. Todavia, nas suas muitas versões posteriores outros adágios foram sendo acrescentados, tais como: There’s never a rose grows fairier in time – Nunca uma rosa se fará mais bela com o tempo’, onde o termo fairier também é empregado para dizer fada, ser sobrenatural. Every rose grows merry with time. ‘Com tempo todas rosa serão felizes’, entre outras variações.

Estes estribilhos eram geralmente combinados com a frase She once was a true love of mine. ‘Certa vez ela foi para mim um verdadeiro amor’ ou alguma variante. É bastante provável que o famoso refrão Parsley, sage, rosemary, and thyme – ‘Salsa, sálvia, alecrim e tomilho’ – popularizado na versão dos anos 1960 dos artistas americanos Paul Simon and Art Garfunkel, tenha sido simplesmente um artifício poético para invocar os nomes de ingredientes populares e sabidamente mágicos, com o fim de conceder ao verso uma rima, como era costume entre os menestréis medievais. Em diferentes engrimanços da Idade Média são encontradas advertências com relação ao uso desses componentes em poções, sobretudo quando se referem ao tomilho e aos alecrins, que também eram chamados simplesmente ‘rose’.

A Canção do Festival de Skaroi
Ilustração retirada do brilhante estudo ‘Faeries’, dos pesquisadores Brian Froud e Alan Lee (Peacock Press/Bantam Books, 1977). Note-se a advertência dos autores sobre os perigos oferecidos pelos vegetais favoritos dos elementais – dentre eles o Tomilho Selvagem.

A seguir, o ser elemental convoca seu mensageiro, que é aquele que canta, e conclui o primeiro verso com melancólica nostalgia: Remember me to one lives there… ‘Recorde-me àquela que lá vive.’ She once was a true love of mine. ‘Certa vez ela foi para mim um verdadeiro amor.’

O feitiço

O elfo transmite suas instruções: Tell her to think back upon younger days… ‘Diga a ela para relembrar os dias da juventude’. Em um feitiço essa expressão indica uma prática mágica. Tem o mesmo sentido de ‘retroceder sobre os dias do passado’ e pode ser exercitada andando-se de costas enquanto, de olhos fechados, visualiza-se a sorte desejada. 

O estribilho responde: Yesterday holds memories in time… ‘O passado guarda as memórias do tempo…’ 

Segue o sortilégio: And Seek yonder crossroads… ‘…E (diga a ela) procurar pela encruzilhada além.’ Where we partted ways. ‘De onde os nossos caminhos se separaram.’ Ou seja, para buscar o lugar do encontro mágico andando de costas, de modo que aos outros as pegadas pareçam estar se afastando. O primeiro verso é concluído com a rima: Then she’ll be a true love of mine. ‘Então ela será um verdadeiro amor meu’.

Na segunda estrofe o elfo novamente conclama seu arauto: Tell her to follow the path to the Shire…‘Diga a ela para seguir o caminho para o Condado.’ O sentido da frase é obviamente instar a jovem a prosseguir em sua decisão. Ao mesmo tempo, serve para indicar a direção de Yorkshire, o condado de York, na costa do Mar do Norte, onde está localizado o burgo Skaroi.  Para conhecer melhor clique aqui: https://en.wikipedia.org/wiki/Scarborough,_North_Yorkshire

Yesterday holds memories in time – responde o estribilho.

For there she will find her heart’s true desire ‘Pois lá ela encontrará o verdadeiro desejo do seu coração’ – lá, quer dizer: no lugar aonde é feita a magia. Ela assim encontrará o lugar para fazer o pacto com o duende. Then she’ll be a true love of mine. ‘Então ela será um verdadeiro amor meu’. Como esperado, o verso conclui com a rima. 

As instruções prosseguem e na terceira estrofe o próximo passo é dirigir-se a um lugar mágico: Tell her to come to the old willow tree … ‘Diga a ela que venha ao velho salgueiro…’ O salgueiro é a árvore dos feiticeiros, pois em seus ramos pendentes e assombrosos, quase sempre envoltos na neblina, abriga-se uma variedade de criaturas dos entre-mundos – fadas, duendes, anões e salamandras. Seres amorais de natureza anímica, sentinelas do mundo natural e senhores dos elementos que manifestam. 

A Canção da Feira do Burgo Skaroi
Duendes geralmente não têm um aspecto agradável, mas podem assumir a forma humana para se revelarem, conforme mostra esta ilustração de Brian Froud para a Bantam Books.

Os elementais desejam ardentemente experimentar as incertezas do livre arbítrio, como acontece com os seres hominais. Com isso pretendem desfrutar de todas as vicissitudes do terror e da esperança, da paixão e do êxtase, do arrependimento e da dor. Por saberem-se excluídos desse vaivém notoriamente delicioso, as criaturas sobrenaturais (com compreensível inveja) urdem tramas amorosas para seduzirem almas invigilantes, e aprisionando-as como pássaros engaiolados, com deleite nutrem-se de seus prantos e lamentações. Mas os elfos são seres imortais se comparados aos humanos, e a eles as inquietações do coração são como uma brisa passageira. Nada do que façam saciará o desejo veemente de experimentarem, mesmo que por um instante, a preciosa e precária encarnação humana. Quando os elfos se dão conta disso, caem prisioneiros de paixões devoradoras e perdem-se no vício dessas ilusões.

Assim, a terceira estrofe do poema encerra indicando o lugar do encantamento: Where the spirits of lost love ‘Onde os espíritos do amor perdido’ Still whisper to thee ‘Ainda suspiram – sopram encantos – para ti’. Thou art still a true love of mine… ‘Vós ainda sois um verdadeiro amor meu.’

A última estrofe do poema é a mais importante. Nela o elfo revelará a magia alquímica do seu feitiço. Tell her to gather three lilies of White. ‘Diga a ela para recolher três lírios brancos’. Desde as tumbas dos faraós do Egito os lírios brancos são as flores da saudade. Decoram os cemitérios com opulenta e efêmera palidez – porque embora logo venham a desfalecer, recordam-nos que nem mesmo Salomão em sua glória se vestiu como um deles. Representam a fugaz beleza da juventude e aqui, neste caso, fica evidente a menção às Três Ninfeias ou Nenúfares, os três lótus brancos, as imaculadas flores do lodo. 

Após o estribilho: Yesterday holds memories in time… o poema prossegue: To place at my headstone beneath the moon’s light… ‘Para depositar no meu dólmen sob a luz da lua’. No lugar assinalado e na adequada hora planetária, a oferenda do desejo firmará o pacto com o duende. Forever she’ll be the one true love of mine… E ‘para sempre será ela o meu único verdadeiro amor…’ – encerra a canção, selando o sortilégio com uma promessa.

No vídeo mostrado a seguir o grupo musical gótico Nox Arcana interpreta a versão original de Yesterday holds memories in time, ou como nos dias atuais é conhecida: Scarborough Fair Canticle. O vídeo foi escolhido por conter legendas com a letra da canção original, possibilitando ao leitor acompanha-la. Não obstante, suas ilustrações em nada se relacionam com os argumentos aqui apresentados. Clique e confira.

A transformação

A mais antiga referência literária ao cântico da feira de Scarborough é a balada escocesa The Elfin Knight – O Cavaleiro Élfico – da segunda metade do Século XVII, coletada pelo folclorista americano Francis James Child em fins do século XIX. Nela, também um elfo tenta seduzir uma jovem. Para defender-se da magia do duende, a donzela tece uma resposta igualmente mágica, também em modo dórico e em quatro estrofes, desafiando-o a cumprir determinadas tarefas impossíveis, que se alcançadas terão como recompensa seu amor e sua castidade. 

Dezenas de versões da canção sobreviveram até o final do século XVIII. Uma curiosidade é que essas variações referem outros locais além da Feira de Scarborough, incluindo Wittingham Fair e Cape Ann. Em algumas o estribilho foi modificado para indicar um lugar: …betwixt Berwik and Lyne – ‘…entre Berwik e Lyne’. Em outras não há menção ao nome de um lugar e essas versões foram geralmente chamadas de Tarefas dos Amantes.

As referências à tradicional canção da feira do burgo Skaroi adornadas com o estribilho ‘salsa, sálvia, alecrim e tomilho’ remontam às variantes tardias do fim do século XIX, e a frase pode ter sido copiada da balada Riddles Wisely Expounded – Enigmas Explicados com Sabedoria – que possui enredo semelhante. Segundo uma crença da época, eram esses os ingredientes de uma poção do amor, capaz de induzir a pessoa que a tomasse a apaixonar-se. Os celebrados compositores Paul Simon e Art Garfunkel certamente colheram daí seu hit de sucesso dos anos 1960. 

Cantada em dueto, a variação concebida no Século XX combina as estrofes resgatadas por Francis James Child (que contém as tarefas impostas ao elfo pela jovem e o estribilho dos ingredientes da poção mágica) com a letra da canção pacifista The Side of a Hill – O Lado de uma Colina – escrita por Paul Simon em 1963. Entretanto, percebe-se que a intenção do autor, nesse caso, não é comunicar um ritual de magia (o resultado faz exatamente o contrário), mas apenas intercalar os versos de ambas as composições a fim de tecer uma canção contemporânea, sem outras finalidades senão as de entreter o público com uma bela melodia medieval entoada no segundo grau da escala natural maior de Dó. 

A versão da letra composta por Paul Simon contendo a combinação das duas composições pode ser encontrada no link a seguir: 

https://www.letras.mus.br/simon-e-garfunkel/36251/

No vídeo abaixo Scarborough Fair Canticle é interpretado por Paul Simon e Art Garfunkel no histórico concerto realizado para mais de 500 mil pessoas no Central Park, em Nova Iorque, em 19 de setembro de 1981.

Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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