Brasília foi concebida a partir de dois grandes princípios de fundação: a Urbe Utópica e a Terra Prometida. Por conta disso, ao longo dos anos abrigou-se em suas adjacências uma variedade de novos paradigmas espirituais, tornando a região rica em fontes de conhecimento. Foi assim com o povo da Cidade Eclética, reunido pelo espiritualista Yokaanan Oceano de Sá, em 1957, às margens do Rio Descoberto. Assim foi, também, com os iniciados do Vale do Amanhecer conduzidos por Neiva Zelay, e com os “monges talibãs” da Cidade da Fraternidade, mais tarde rebatizada Universidade da Paz pelo emérito professor Pierre Weil.

Talvez seja conveniente esclarecer primeiro, que Brasília já foi declarada irmã siamesa de certos monumentos arqueológicos do Egito e que a sua fundação tem as bênçãos de um santo visionário. Há muito a cidade respira uma atmosfera mística. Além das religiões tradicionais, cujos templos estão situados em avenidas pré-determinadas no traçado urbano, um notável manancial de alternativas filosóficas nela coexiste desde os seus primórdios[i]. Opções que vão da observação de discos voadores às práticas de vidência e curas espirituais; da investigação da vida além da morte; das escolas de sabedoria alcançada pela meditação ou pelo arrebatamento por meio da ingestão de substâncias rituais. Dos xamãs, dos círculos devocionais, da fotografia Kirlian, dos oráculos e das terapias holísticas; dos sincretismos, das fraternidades universais e das seitas secretas.

Com efeito, ao tempo em que a Novacap foi construída, muitos para lá se dirigiram em busca dos sinais da utopia e suas promessas de prosperidade. Por esta época havia nos arredores da cidade, perto dos antigos currais da Contagem, um recôndito lugar remanescente dos tempos coloniais[ii]. Ali vivia um cigano, mascate ou malabar de nome “Abu”, conhecido também por Abrão ou Abraão[iii], e chamado ainda: o caminhante desperto, por se tratar de um taumaturgo pedestre com reconhecidos poderes paranormais. Ignorado pela mídia, como costuma ocorrer com homens de gênio, Abu era respeitado pelos moradores da região por suas habilidades mágicas. Curava, fazia previsões e lia com precisão as figuras solstícias e equinociais inscritas no orbe celeste. Dele se dizia, também, que podia ver o futuro no fundo de uma tina d’água e adivinhar a aproximação das catástrofes simplesmente encostando o ouvido ao chão. E não é só isso – até hoje há quem defenda que é dele, e não do Presidente JK, a polêmica efígie numismática que remete à face do príncipe Akhenaton.

Quando soube desses detalhes, certo conselheiro de um influente personagem político decidiu ir até Goiás, ao local onde a capital era construída, para lá encontrar o cigano e entrevistar-se com ele. Cobiçava aprender a ciência de Abu e talvez o convencesse a ensiná-lo, mediante determinados acertos prévios. Hoje não há como resgatar pormenores deste estranho encontro, mas podemos melhor ilustrar o que as vozes correntes repetem, recorrendo aos ensinamentos das tradições[iv]. Reuni relatos, examinei documentos e narrativas, os organizei e agora ofereço:

O Exemplo de Abu Bar-Abbas e do Conselheiro Ingrato.

Foto do Congresso Nacional ao tempo de sua construção. Autor desconhecido, 1959.

No mesmo dia em que chegou ao canteiro-de-obras da futura capital, dirigiu-se o conselheiro às cercanias da cidade à procura do local onde vivia Abu. O jipe candango seguiu levantando poeira pela estradinha de chão até não mais poder avançar devido ao emaranhado da vegetação. Dali o aspirante a feiticeiro continuou a pé. Tão logo se embrenhou na mata de galeria, no rumo de umas grotas fundas, deu com o cigano sentado à sombra de uma desbotada tenda oriental sob as árvores, onde havia um córrego e uma pequena cachoeira formando um lago. Abu o recebeu com alegria, como se já o aguardasse, e pediu que adiassem o motivo da visita até depois do almoço. Mostrou ao redor da tenda uma série de bancadas bem distribuídas em meio à vegetação, e sobre elas instrumentos de bronze e uma infinidade de frascos de cristal contendo substâncias químicas.

Depois de comerem, o conselheiro contou a razão daquela visita e rogou ao cigano que o ensinasse as artes mágicas. Mestre Abu disse que adivinhava ser ele conselheiro político, homem de boa situação e futuro promissor na cidade que ali estava sendo erguida. Contudo, temia ser por ele preterido tão logo ensinasse os segredos do mesmerismo. O conselheiro então prometeu que jamais esqueceria essa dádiva e assegurou que estaria sempre às suas ordens. Acertados e resolvidos os pormenores desse assunto, Abu comunicou ao conselheiro que as ciências ocultas não podem ser reveladas ao ar livre, e o conduziu por um estreito caminho onde havia no chão uma grande argola de ferro. Antes disso, ao levantar-se da mesa disse à criada que para o jantar tivessem perdizes, mas só as colocasse a assar quando ele ordenasse.

Mestre e discípulo levantaram o pesado alçapão e desceram uma escada em espiral lavrada na pedra, tão longa que ao conselheiro pareceu estar molhando os pés no próprio Aqüífero Guarani. Ao final da escada havia uma câmara e depois uma biblioteca e depois um aposento com instrumentos mágicos. Examinavam os livros, e nisso estavam, quando dois engravatados entraram com uma carta para o conselheiro, escrita pelo chefe político do seu estado. A liderança comunicava estar muito doente e, ao mesmo tempo, rogava-lhe que se quisesse encontrá-lo com vida não demorasse. Ao conselheiro contrariaram muito essas notícias; primeiro pela enfermidade do chefe – que era também seu tio –, depois, por ser obrigado a interromper seus estudos. Optou por escrever uma breve desculpa e despachou-a com os emissários. Três dias depois vieram homens enlutados com outras cartas para o conselheiro. Nelas se lia que seu tio havia falecido; que o partido estava elegendo o sucessor e aguardavam, com as bênçãos da democracia, fosse ele o escolhido. Diziam ainda que não se incomodasse em voltar, posto que parecesse muito melhor que o elegessem em sua ausência.

Passados dez dias vieram outros executivos muito bem vestidos, que o saudaram como sucessor do falecido tio. Quando Abu viu essas coisas, dirigiu-se com muita alegria ao novo chefe político e lhe disse que agradecia ao Senhor tão boas notícias serem recebidas em sua casa. Depois, pediu o cargo vago de conselheiro para um de seus filhos. O ex-conselheiro e novo comandante eleitoral fez-lhe saber que havia reservado a vaga para o seu próprio irmão, mas que estava determinado a favorecê-lo e que juntos partissem sem demora para a sua cidade de origem. Lá foram recebidos com comícios e foguetórios.

A vida ia bem até que seis meses depois o novo caudilho foi visitado por enviados do presidente do partido, que lhe oferecia um vantajoso cargo à frente de uma importante estatal no Rio de Janeiro, deixando em suas mãos a nomeação do sucessor. Quando Mestre Abu soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe o cargo para o filho primogênito. O ex-caudilho e agora presidente de estatal lhe fez saber que havia reservado o posto para o seu próprio tio, irmão de seu pai, mas que havia determinado favorece-lo, e que partissem imediatamente para o Rio. Mestre Abu não teve outro remédio senão concordar.

No Rio de Janeiro os receberam com hinos e discursos. Os ventos eram agora muito favoráveis, posto que o prestígio atraía o dinheiro. Dois anos depois, o dirigente da importante companhia estatal recebeu enviados do Presidente da República, que lhe oferecia o cargo de Ministro da Economia, deixando em suas mãos a nomeação de um sucessor para o comando da empresa pública que presidia. Quando Mestre Abu soube disso, recordou-lhe a antiga promessa e pediu-lhe a presidência da estatal para o filho. O novo Ministro de Estado explicou que havia indicado para o cargo o seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que estava decidido a favorece-lo e que, portanto, seguissem juntos para Brasília. Mestre Abu não teve alternativa senão concordar. 

Em Brasília foram saudados com banquetes e desfiles. Quatro anos depois, o presidente da república faleceu repentinamente e o ministro foi escolhido, por meio de eleição indireta do Congresso Nacional, para tomar o seu lugar. Quando Mestre Abu soube disso foi ter com o homem. Saudou-o e bem-disse a feliz circunstância de o país não estar preparado para uma eleição direta. Depois, lhe recordou a antiga promessa e pediu o cargo vacante de ministro para o filho. O novo Presidente da República o ameaçou com o cárcere, pois bem sabia que não passava de um embusteiro e um charlatão; que em Brasília, nos tempos da construção, era conhecido por praticar curandeirismo e feitiçaria. O miserável Abu disse então, que a ele não restava outro remédio senão voltar para casa e lhe pediu alguns trocados para comer qualquer coisa no caminho. Irado pela ousadia do bruxo, o novo chefe da nação negou-lhe o pedido e já ia erguendo-se ele mesmo para expulsa-lo, quando Abu, cujo rosto havia rejuvenescido incrivelmente, disse com voz sem tremor – “pois terei que comer sozinho as perdizes que encomendei para a ceia”. Nesse instante a criada apresentou-se e ele ordenou que as colocasse para assar. A estas palavras o Presidente se encontrou novamente nos arredores da cachoeira, sob as árvores, não mais do que mero conselheiro; e tão envergonhado estava de sua ingratidão, que não atinava em como desculpar-se. Mestre Abrão então disse que bastava esta prova, negou-lhe sua parte nas perdizes e o acompanhou até a saída da mata, onde lhe desejou um feliz retorno, despedindo-se com grande cortesia.

Medalha com a imagem de Juscelino Kubitschek, cuja face os místicos de Brasília atribuem ao príncipe egípcio Akhenaton, o reformador.

Notas

[i] Segundo o escritor Deoclécio Luz, no livro Roteiro Mágico de Brasília (Coleção Fatos, Mistérios e Lendas do Centro Oeste, Edição do Autor, Brasília1989), no final dos anos 1980, pouco mais de duas décadas depois de fundada, Brasília já contava com mais de 120 congregações, escolas ou ordens plenamente atuantes.

[ii] Hoje aí se localiza a Aldeia do Urubu, vilarejo nas proximidades do local onde no passado se situaram as Reais Estrebarias da Contagem e de onde partiam os mineradores que iam no rumo do Rio Araguaya em busca de metais e pedras preciosas.

[iii] A expressão Ab[r] Aam no idioma adâmico, o mais antigo de todos, significa: “filho primeiro por cuja boca fala o Pai”.

[iv] Inspirado no relato “O Feiticeiro Desprezado”, de J. L. Borges, que o encontrou no Livro dos Exemplos do Conde Lucanor e de Patrônio, de Dom Juan Manuel, que por volta de 1335 o recolheu de um livro árabe do século XI – As Quarenta Manhãs e as Quarenta Noites.

Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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