Parece incrível que a maioria das pessoas desconheça esta bela paisagem situada nas cercanias de uma grande cidade do Brasil. Mal disfarçada na vegetação singela de pequenas propriedades rurais, e cortada por estradas vicinais sem aparente importância, a Trilha do Abrão Cigano atravessa a região mais a oeste da Serrinha do Paranoá, no Distrito Federal. O lugar é cercado de mistérios que poucos se aventuram a desvendar, como a controvertida narrativa da noiva defunta, ou o caso do lobisomem infeliz, a lenda da Mãe-do-Ouro e do personagem que dá nome à trilha. No início da década de 1960, Abrão (Abu) Bar-Abbas foi um taumaturgo pedestre a quem se atribuíam estranhos poderes paranormais. Dele diziam que podia ver o futuro no fundo de uma tina d’água e adivinhar a aproximação das catástrofes simplesmente encostando o ouvido ao chão.

Contrariando a tradição local de não interferir com o inexplicável, um grupo heterogêneo de pesquisadores – a Irmandade do Caminho – decidiu embrenhar-se pela trilha. Primeiro descendo a ravina que parte desde a Aldeia do Urubu, um lugarejo vizinho ao Outeiro da Mãe Três Vezes Admirável, até as grotas mais fundas e dali seguindo até onde o Córrego Urubu deságua em uma pequena protuberância. Local conhecido por Cachoeira da Fumaça devido aos miasmas que dela emergem nas noites de lua cheia.

Com o intuito de produzir uma reportagem sobre a região e suas tradições culturais, acompanhei os buscadores em boa parte do trajeto e adianto que a expedição, convenientemente programada para a tranquila manhã de um sábado luminoso de primavera, teve por único objetivo demarcar um percurso, somente dando início a possíveis futuras investigações. Contudo, alguns dos participantes da caminhada comunicaram – de maneira velada em mensagens reservadas – que algo lhes havia ocorrido. Sobre isso não estou autorizado a discorrer, relatando apenas que o equipamento por mim usado para gravar entrevistas entrou em colapso às doze horas e doze minutos exatamente, e só voltou a funcionar uns 50 minutos mais tarde, embora a fita tenha seguido registrando certo tipo indecifrável de ruído estático de fundo. Por ainda não ter estudado de forma apropriada este conteúdo, não irei aqui compartilhá-lo, limitando-me a apresentar as fotos que fiz durante a caminhada. (Brasília, Setembro de 2006)

Estrada vicinal de acesso à Aldeia do Urubu. Foto: Valério Azevedo ©2006
Aspecto da Trilha do Abrão com a cidade de Brasília ao fundo. Foto: Valério Azevedo ©2006

A Magnífica Irmandade dos Buscadores do Caminho foi um grupo de iniciados que durante algum tempo frequentou certas escolas esotéricas dos arredores de Brasília. Sem desejar notoriedade ou fazer qualquer tipo de pregação, aliciamento ou propaganda, apresentavam-se simplesmente como buscadores, e o que buscavam era a verdade. Não a enganosa verdade instantânea das redes sociais da Internet, usada unicamente para disseminar mentiras – mas a verdade contida na expressão que proferiam a si mesmos ao ingressar numa trilha: “aquele que está no Caminho, mesmo na escuridão saberá que está no Caminho”.

Buscadores percorrem a Trilha do Abrão Cigano. Foto: Valério Azevedo ©2006

Saguim (Callithrix Jacchus) é um pequeno primata arborícola abundante nas matas da região. Foto: Valério Azevedo ©2006
Escadaria de pedras na Trilha do Abrão Cigano. Foto: Valério Azevedo ©2008
Córrego Urubu. Foto: Valério Azevedo ©2006
A Cachoeira da Fumaça. Foto: Valério Azevedo ©2006

Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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