Revolvo o interior da gaveta em busca do que já não espero encontrar. Chaves, ungüentos, canetas, canivete, isqueiro, tinteiro seco, barra de enxofre. Uma ametista, a estampa de Santo Expedito, comprimidos para angústia, acidez, pasmo e esquecimento. Cartões anônimos, contas de vidro, moedas antigas, um bloco de notas com palavras rabiscadas.

Certa vez eu disse à Célia de Moraes que as palavras são como aerossóis. Projetam-se no ar e pairam no ambiente carregadas de intenções. Algumas são adocicadas pelo perfume das boas lembranças. Outras trazem o amargo das experiências más. Outras, ainda, sabem a significados que desconheço, esqueci ou decidi não lembrar. Isso não importa. No final, as palavras sempre se dissipam, levando com elas suas impressões.

Palavras levaram-me ao êxtase e à náusea. Palavras mergulharam meu espírito no abismo e galgaram-me ao firmamento. Palavras indagaram meus segredos e encobriram meu vaticínio. Às vezes acentuadas como perfumes baratos, às vezes poluídas como baforadas de ganja. Se as desejo guardar, escorrem por entre os meus dedos. Se delas quero livrar-me, mancham meus pensamentos irremediavelmente. Extinto o sortilégio, vão sempre cair no fundo de alguma gaveta, entre anotações avulsas, respostas tardias, rostos anônimos, tubos de spray vazios e velhos HDs com seus arquivos criptografados pelo esquecimento.

Fragmentos no interior da gaveta

Abro uma dobradura ao acaso. Nela duas fileiras de números dispostos a intervalos regulares sugerem haver alguma relação entre eles. Na linha de cima se lê …1, 2, 3, 4, 5 – 6 – 7, 8, 9, 10, 11 e na de baixo: …0, 21, 20, 19, 18 – 17 – 16, 15, 14, 13, 12.

Nas costas do papel foi anotado: 13 maior, 5 de pentagramas, 6 maior e um comentário gravado à letra miúda que há muito enviei a mim mesmo. Com esforço decifro sua verdade inapelável: “O futuro é uma construção do desejo, que reduz o presente à agonia de eternamente consumir-se nas lembranças do passado.”

De volta à gaveta, entre outras coisas encontro a lista de compras, de compromissos, de datas adiadas ou às quais renunciei.

Um endereço sem nome.

Um nome sem rosto.

A resposta lacônica e nunca enviada:

Entrarei em contato em breve. Bjs.

Em um dispositivo de memória eletrônica, uma pasta dentro de outra pasta com muitos arquivos dentro faz a tarefa de explora-los parecer infinita. Abro ao acaso aquele cujo nome soa familiar. Verifico que o autor é quem afirma ser:

“Por fim, alcancei minha meta, 

E desvendei o segredo da minha alma. 

Eu sou aquele para quem rezei,

Aquele a quem pedi ajuda,

Eu sou aquele que tanto procurei,

Eu sou o cume da minha própria montanha. 

E leio na criação

uma página do meu próprio livro. 

Pois eu sou o um feito de muitos. 

A substância de tudo,

Pois dois não há, o Todo eu sou. 

Toda a criação sou eu.

Pois o que existe em mim,

de mim é originado.  

E a mim é dado o absoluto. 

Pois o pai e o filho, eu sou. 

O que quero, faço e vejo. 

E meus desejos fluem, realizados

Pois eu sou o conhecedor e o conhecido.

O súdito, o trono e o rei. 

Três em um é o que sou.

E o inferno não é senão um demônio que inventei

Durante o pesadelo em que acreditei viver separado.

E tendo da ilusão despertado,

Descobri que comigo mesmo havia brincado. 

E acordado que estou agora,

Com decisão em meu trono me instalo! 

E meu próprio reino governo. 

O mestre de mim mesmo, eu sou, 

pela eternidade afora.” 

(Álvaro de Campos)

Condenados a permanecerem obliterados na gaveta por tempo indeterminado, esses arquivos têm por condição continuarem ativos até o término da energia fornecida pela bateria conectada ao processador. Em breve estará extinta. No fim, a corrente elétrica diminuirá nos circuitos, desligando-os um a um, e a memória se apagará. 

Nessa mesma gaveta em um desses arquivos reside um pensamento e o pensamento corresponde a um nome. Imagem descolorida pelo tempo, comunica um conjunto de símbolos organizados de forma a restituir a identidade a alguém, sua ideia ou lembrança. Esse indivíduo, por sua vez, terá copiado a expressão que traz de outra pessoa, anterior, que se inspirou em uma terceira, a quem sucedeu. A esta última antecedeu alguma outra e assim sucessivamente até o alvorecer dos tempos e ao primeiro humano, que o leu nas estrelas do firmamento.

Nessa vasta e insondável engrenagem de símbolos em sucessão, existiu um dia o tribuno Marco Flamínio Rufo, da Legião de Roma em Arsinoé. A ele se refere o escritor argentino Jorge Luiz Borges, quando cita a incrível ‘Narrativa Atribuída ao Antiquário Joseph Cartaphilus’. Borges acedeu ao texto por meio dos escritos de De Quincey, que o encontrou em Plínio. Com exceção dessa única narração atribuída, todas as outras fontes são oferecidas por mãos apócrifas.

Epílogo

O tribuno Marco Flamínio entrou no abrasado deserto ao tempo em que Diocleciano era Imperador. Seus subordinados tramaram sua morte. Fugiu, foi ferido, perdeu-se na tempestade e andou pelas margens do Estige. Viveu entre trogloditas, percorreu os labirintos de uma cidade deserta e os caminhos de um mundo vazio. Na obstinação da busca, cumpriu a solidão dos que estão sempre por partir.

Nas palavras de Cartaphilus lemos que “Quando o fim se aproxima já não restam imagens da lembrança. Só restam palavras”.

A declaração do tribuno – anos depois tradutor, ourives, alquimista, armeiro e, por fim, antiquário – remete ao cumprimento de uma tarefa, não à mera divagação filosófica. Embora isso, no post-scriptum da edição de 1950 do El Aleph, o antiquário de Borges conclui dizendo: “No fim já não restam imagens da lembrança, só palavras. Palavras deslocadas, palavras mutiladas, palavras de outros. Pobre esmola que me deixaram as horas e os séculos” .

Lá fora, lampejos de âmbar reverberam entre as folhas secas do arvoredo de outono. A última luz da tarde acena com sombras de adeus na parede. Empurro a gaveta fechando-a lentamente, enquanto observo seu interior mergulhar na escuridão. Acabo de organiza-la. A partir de agora os dias ficarão mais curtos e frios. As noites, mais mudas e profundas. Garatujas em anotações perdidas nunca serão decifradas. As cores de uma fotografia irão desbotar. A bateria de um gadget se extinguirá. Um mantra cairá no esquecimento e lembranças irão se apagar.

vanaweb, o avatar original do website A Existência Virtual
vanaweb, o avatar original do website A Existência Virtual

Publicado por vanaweb

Valério Azevedo nasceu na segunda metade do Século XX. O autor é, portanto, um baby-boomer. Cresceu assistindo televisão. Aos nove anos acompanhou, ao vivo, o homem caminhar pela primeira vez na superfície da Lua, porém sem cores. Há esse tempo, seriados de TV mostravam viajantes do espaço, do tempo e do fundo do mar combatendo monstros ameaçadores. Somente em 1973 a televisão no Brasil ganhou cores e ele passou a ver, sem assombro, negras silhuetas contra o céu azul despejarem a morte sobre a Indochina. Nessa época havia na casa dos seus avós um telefone que ele nunca usou. Anos mais tarde, em seu primeiro emprego, Valério conheceu o videoteipe. Invento extraordinário, que aprimorou a manipulação de imagens e sons, causando na narrativa audiovisual um sentimento algo instantâneo e urgente, e apaixonou-se por essa ideia. Pouco depois apareceram os primeiros computadores pessoais. Eles poderiam facilmente substituir máquinas de escrever e pilhas de papel, mas o autor os percebia apenas como brinquedos. Ele jogava xadrez com um deles e em sua esverdeada tela de fósforo encontrou inspiração para começar a escrever ficção. Com a chegada, no Brasil, do telefone celular e da rede mundial de computadores, em princípios dos anos 1990, a conexão entre as pessoas se intensificou incrivelmente. Ao mesmo tempo, a passagem de registros analógicos para digitais alterou de forma decisiva o modo de se produzir informação. Pouco depois da virada do milênio, o advento das redes sociais da internet foi o golpe de misericórdia na elaboração regulamentar de informações. Para o autor da página A Existência Virtual, “agora que os telefones fazem tudo, e até transmitem imagens e sons ao vivo, cada pessoa já pode se ocupar de espalhar sua precária e angustiada verdade, que a seguir se dissolverá como os entressonhos do alvorecer”. Então, decidiu retornar ao papel impresso, pois segundo ele, conforta-o a sensação do livro nas mãos e a ausência da barra de rolagem.

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