Das Confissões do Alpendre Verde – Capítulo XXI,

Das Confissões do Alpendre Verde

À época da virada do milênio, o Alpendre Verde era um local de estudos espiritualistas nos arredores da cidade de Alto Paraíso, em Goiás. Naquele tempo a maioria das pessoas ia lá somente por curiosidade, algumas a procura de atendimento terapêutico, outras para participarem dos exercícios. E todas buscavam uma informação qualquer – magia, tarô, merkaba, meditação, práticas de regressão à vidas passadas etc. Entre os variados grupos de estudo que ali existiram havia o meu. Breve encontro fortuito de alguns indivíduos acidentais, orbitando a franja mais distante do universo.

Antes de prosseguir, porém, é necessário esclarecer que assim como São João Bosco, também o mestre indiano El Morya, da Grande Fraternidade Branca, profetizou, em 1957, que os Caminhos Místicos de peregrinação do Terceiro Milênio seriam revelados nos planaltos centrais do Brasil: “Os peregrinos que buscam o caminho e a iluminação espiritual serão doravante conduzidos para a América do Sul, como o foram, anteriormente, para o Oriente. Para este fim, os Senhores das forças da Natureza e do Reino Elemental estão prevendo um meio natural de acesso até agora não desvendado”.[i]

Muito antes, às vésperas da independência do Brasil, o eminente naturalista Carl Freidrich Philipp von Martius, ao concluir sua viagem de três anos pelo País das Pindoramas, também afirmava ter encontrado na América do Sul um ambiente propício ao contato com as forças invisíveis da natureza. Segundo ele, havia por aqui o reino das Náiades, as ninfas sensuais e murmurantes dos caudais amazônicos; das Dríades, protetoras dos bosques e das Matas Atlânticas; das Hamadríades, que fenecem nas secas e desabrocham com a chuva; e das Oréades, sentinelas dos planaltos tutelares e dos cerrados do Centro Oeste. 

Desde os anos 1970 até meados de 2001, a região onde se localiza a cidade de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, foi, no Brasil, a Meca das sociedades alternativas, das seitas esotéricas e de todos quantos almejassem uma vida mais espiritualizada e saudável, longe da turbulência dos grandes centros urbanos. Para lá acorreram pessoas de todas as partes, pregando a cooperação, o amor livre, a não violência e o estreito contato com os elementos da natureza. A rica paisagem permeada de córregos, rios, cachoeiras e veredas serviu de cenário ideal ao florescimento de comunidades inspiradas no saber holístico e em filosofias orientais. Aguardavam o colapso da sociedade tecnológica de consumo, previsto para o ano 2000. Para lá se dirigiram, também, muitos ufólogos, videntes e sensitivos em busca de sinais advindos da esfera celeste. 

Hoje, os recantos da Chapada guardam ecos da Nova Era de Aquário. Situada sobre uma das maiores jazidas de cristal de quartzo do planeta – visível do espaço – a região é uma espécie de refúgio do realismo mágico, no qual a força da natureza se traduz em uma alquimia pululante de jardins encantadores, e onde os que procuram o caminho da iluminação espiritual podem ser conduzidos pelos Senhores do Reino Elemental.[ii]

O Alpendre, assim como eu o conheci, ficava no interior oculto de uma mata de galeria, ao abrigo de uma antiga árvore margeada por um córrego, nas proximidades de uma pequena queda d’água. Da árvore partiam raízes musculosas, que se contorciam abraçando a terra ao redor da grande pedra lisa onde nos reuníamos.

Nossa prática consistia em meditarmos sobre um determinado conteúdo espiritualista, desde que não dogmático nem doutrinal, e se possível não muito acadêmico porém minimamente razoável, sempre protagonizado por algum dos participantes do grupo, e que poderia se referir a personagens presenciais ou reminiscentes, e até de outros grupos, de modo a manter a corrente do Alpendre atuante mesmo depois da reunião terminar. Assim, a cada encontro algum de nós compartilhava uma experiência e a esta etapa chamávamos ‘Confissões’. A seguir sobrevinha o sensível momento dos comentários, observações e críticas, que bem poderia se chamar de ‘A Cadeira Quente’. Por último, antes da clausura, fazíamos a meditação. A partir daí cada um tirava suas próprias conclusões e as transmitia, ou não, aos demais, de modo que alguns temas se tornavam recorrentes e outros simplesmente se diluíam à hora do chá. Em uma dessas ocasiões tocou para que eu comunicasse a exposição que segue.

Recebi a mensagem a seguir da enfermeira Viviane Terra, de Barra do Garças, Mato Grosso. Embora não a conheça pessoalmente, por lealdade sinto-me obrigado a declarar a veracidade da experiência por ela relatada, todavia não sem antigo temor supersticioso. Sei que as incontáveis deduções, conclusões e a formulação de hipóteses decorrentes dos fatos aqui mencionados serão, ocasionalmente, invocadas na qualidade de matéria prima ao debate. Porém, sem outro fim senão o de multiplicar infinitamente suas variações, como dois espelhos colocados frente a frente[iii].

Um amplo corolário constituído de explicações teóricas e crenças também poderá eventualmente ser desfiado, na qualidade de cordão de pérolas da compreensão inútil ou do intelecto falaz – o que realmente não é nada comparado à experiência em si. Refiro-me à minha vivência do episódio. De como o recebi vinte anos antes de ocorrer e de como hoje eu o interpreto: num distante amanhecer fui arrebatado ao mundo dos espíritos e lá presenciei acontecimentos que agora começam a me inquietar.

Acho desnecessário omitir que a maioria de nós percorre, pelo menos, um terço da vida nos devaneios da aurora. Ali presenciamos fatos, vivenciamos experiências, nos é comunicado. Evidência suficiente para confirmar o comparecimento, nessas ocasiões, de uma infinidade de amigos solícitos, sinceramente dedicados a transmitir suas mensagens adormecidas por meio da imaginação sonâmbula, sem sequer sonharem que também são prisioneiros da densa matéria de que é feita a memória. A maior parte dessas aparições apenas vaga pela erraticidade das energias dispersas, inconsciente do que lhe sucede. Outras não. 

Nem sempre auspiciosa, essa condição é determinada pelas atitudes morais de cada um. Em uma analogia simples, podemos comparar a situação de um determinado espírito, ou melhor, a circunstância em que ele se encontra, com a função de um receptor de ondas de rádio. O espírito representa o aparelho de rádio. As atitudes morais que dele decorrem correspondem à frequência ondulatória que o espírito deseja buscar. A situação em que o espírito está pode ser equiparada ao padrão vibratório da estação por ele sintonizada. Consequentemente, nesses momentos convém permanecermos vigilantes, embora nem todo o tempo despertos.

Assim como os programas dos computadores recarregam e atualizam seus dados sempre que os reiniciamos, também os seres humanos o fazem em relação às suas mentes ao despertar do sono profundo, restabelecendo e organizando alternativas de rotinas para o período que irá transcorrer a seguir. Toda uma criptografia simbólica envolve o trânsito de informações de um lado para o outro, demonstrando que foram tomadas medidas de segurança contra invasores. Em função disso, muitas vezes não nos lembramos completamente daquilo que sonhamos ou guardamos apenas uma parte. A parte que se mostrará mais relevante ao cumprimento da rotina iniciada, independentemente dos nossos desejos ou ambições. Além do mais, é curioso observar que a linguagem empregada na elaboração dessas rotinas de programação, embora de forma simbólica, se expresse livremente, possibilitando a qualquer um alcançar suas infinitas combinações e variações de significados.

Apesar de toda a controvérsia que advirá este relato, a verdade siamesa contida em ambas as narrativas – a da enfermeira e a minha – confirma sem sombra de dúvidas um determinado acontecimento potencial (ou hipotético), ocorrido num tempo e lugar (sejam quais forem) e definido fora do terreno da experiência cotidiana da vida desperta. Em prosseguimento aos trabalhos desta semana no Alpendre, compartilho com o grupo a síntese da missiva que recebi e acabo de reler, acrescida da minha visão dos fatos, vivenciados há mais de vinte anos e provisoriamente intitulada:

O Alvorecer Revelador

“Estimados amigos do Alpendre Verde”,

“Preciso repartir com vocês o quanto este grupo tem sido especial para mim. Esta mensagem é declaradamente uma tentativa de fazer um dever de casa no caminho de me tornar uma ‘comemoradora’, e me reconheço descaradamente em vocês. No encontro do dia 15, Aninha contou que costuma comemorar enquanto desfruta da sensação especial de se deitar numa cama com lençóis e fronhas limpinhos trocados por outra pessoa. Pensei se algum dia isso viria a acontecer comigo, porque sou só eu quem troca a minha roupa de cama. Nessa noite, depois do nosso encontro, cheguei em casa e a roupa de cama havia recém sido trocada – e comemorei a magia do Alpendre”.

“Se antes expus sentimentos com relação ao meu trabalho no grupo, agora soa exagerado falar em Grupo de Trabalho. Parece mais com qualquer coisa do tipo: um Grupo de Inteiro Trabalho. Escrevo isso para expor meus sentimentos com relação a esta minúscula, porém indefectível, reunião de alguns indivíduos isolados, vivendo na orla esquecida do universo, entre o caminho e o abismo, na terceira margem do rio. Escutei-os e desde então já me sinto melhor”.

“Além disso, a magia dessa noite prosseguiu. Aconteceu por meio de um sonho, que trago ainda fresquinho na lembrança – um sonho que émeu e é também do grupo, diga-se de passagem. Poderei, depois, até mudar de idéia quanto a isso, recolhendo-o[iv], mas para o momento apresenta-lo será o suficiente”.

A princípio achei que não devia expor a experiência tão intempestivamente. Sei que desfrutaremos de novos encontros, no devido horário, no devido lugar, na solene ordem das coisas. Organizada e educadamente, sem arroubos e destemperos de enviar mensagens em dias de sexta-feira. Ademais, o motivo de eu escrever em pleno trânsito da Lua fora de curso, não está na razão ou na ausência dela: está no desenrolar dessa estranhíssima história. Eis aqui o meu relato”:

“Sonhei nessa noite que acompanhava o Sr. Valério a uma reunião de trabalho dele, como se eu fosse lá ver ou testemunhar o que andava ocorrendo. Não era dia de trabalho e era como se eu fosse atestar, conferir, verificar as vicissitudes e o tamanho do vazio ao redor dele. No meu sonho o Sr. Valério era, então, um enfermeiro dedicado e competente, que amava o que fazia, mas num lugar decadente e com uma equipe horrível, sem qualquer compromisso de coração com o que ali era feito. Fiquei acompanhando de perto, mas sem despertar atenção, porque sou observadora e me considero uma boa testemunha”.

“O Grupo de Trabalho (umas dez pessoas) estava todo reunido de pé, numa UTI Neonatal, ao redor de uns quatro ou cinco daqueles bercinhos aquecidos e cheios de equipamentos, que ficam ligados aos bebês. Cada um deles com um bebê em estado grave, lutando para viver. A chefe da enfermagem, falando baixinho, quase sorrateira, instruiu o grupo a dar o mínimo atendimento possível, fingindo e enrolando no serviço. O Sr. Valério às vezes me olhava com um ar de ‘eu não disse?…’ A chefe continuou, e em tom ameaçador advertiu a todos que se não fizessem isso, ou se fizessem algo ‘errado’, seriam humilhados: teriam os uniformes sujos de sangue – que é o material mais contaminado e temido num hospital. Seriam cuspidos, e pior: o paciente seria castigado. Isso nos provocou horror e indignação. Não faz sentido o paciente receber um castigo por um erro cometido pelo enfermeiro!”

“Neste momento, para demonstrar que era capaz de qualquer coisa, até mesmo castigar um paciente, a enfermeira-chefe empurrou um dos bercinhos, a fim de maltratar o bebê; e o que ninguém, nem mesmo ela, esperava aconteceu: o bebê caiu e com a queda cortou seu suprimento de oxigênio.”

“Foi um pavor geral, mas no lugar de se buscar socorro, todos disfarçaram e deixaram o ambiente, tensos, temendo represálias. Em conseqüência o bebê acabou morrendo. Empunhando um prontuário, a chefe anotou propositada e cinicamente que o paciente havia morrido de ‘causas naturais’. Saímos arrasados, não tínhamos como fazer nada. Senti-me impotente, de mãos atadas. Sabíamos que aquilo e outras coisas piores estavam acontecendo e iriam continuar”.

“Eu e o Sr. Valério chegamos à conclusão de que era tempo de ir embora, que não era mais possível continuar trabalhando ali. Ficamos então cogitando sobre quais as partes desse fato iríamos relatar no Alpendre – bem como o que iríamos omitir. Era algo horrível demais para ser simplesmente comentado, algo triste demais. Depois, chegamos à conclusão que a humanidade não necessita deste tipo de censura. Se algo é ‘triste demais’, nunca é tão terrível que não possa ser revelado inteiro, sem arranjos, sem censuras, sem disfarces. Pela primeira vez tive esperança de que por meio da magia faríamos alguma coisa.”

“Sem demora desejo apertar o comando para o envio dessa mensagem, mas sinto-me dividida: um lado meu pede perdão, o outro anseia por um milagre”.

Afetuosamente, Vivi

Conforme já referi, certa vez estive no mundo dos espíritos, assim como nos descreveu Emmanuel Swedenborg. Uma luz branda emanava do céu e as cores eram suaves, tal qual num amanhecer. Eu estava junto a um grupo onde embora não reconhecesse ninguém, todas as fisionomias me eram familiares. Subitamente estávamos nas alturas, em meio a nuvens, onde diante de nós uma mulher jovem e vestida de enfermeira olhava para o sol, inspirando languidamente, com seus braços estendidos para a luz. Senti medo e intuí em seu gesto o desafio a alguma lei natural – como se estivesse tentando voar sem asas.

Então me dei conta de que o nosso lugar não era nas alturas, mas sim, a bordo de um vagão de trem estacionado em alguma remota e inglória estação na selva sul-americana. Isto não me surpreendeu. No mundo espiritual são comuns as transportações a locais que representam estados da alma. Minha sensação foi de angústia. Havia no grupo inquietação e nos olhares percebi medo. Deitada no chão do vagão a mulher estendia os braços e com os olhos semi-serrados, balbuciava frases num idioma incompreensível. Seu rosto denunciava um estranho êxtase, num sorriso infantil quase inconsciente. Ao redor, a tenebrosa estação em ruínas nos vigiava mergulhada na selva.

De volta às alturas nos encontramos em grande confusão e desacordo. Todos gritavam ao mesmo tempo. Alguns, que ela desviasse seu olhar da luz. Outros, que não estendesse os braços e retornasse ao grupo. E diziam: vai cair! 

Foi inútil. A mulher, inspirando cada vez mais forte, começou a levitar. Em seguida teve sua face iluminada e seus cabelos agitados pelo vento. Alguém gritou: “estende as tuas mãos para o Senhor teu Deus”. Mas curiosamente o que se escutou foi: “segura na mão de Deus”, pronunciado sem fé por quem já não tinha esperanças de vê-la salva. A sentença me repugnou, pois a percebi patética e plasticamente obscena. Então, a mulher tocou a escura e cadavérica mão da Morte, que a segurou.

Atônitos e sem reação nos calamos, assistindo a caveira envolvê-la em sua negra mortalha. Logo atrás e um pouco acima de nós alguém de dentro da luz a tudo assistia, mas logo desapareceu. Em seguida despertei e tive dificuldade em situar-me, com a sensação de ter saltado de um veículo em movimento, tamanha a inércia causada pela volta ao estado de vigília.

Naquele tempo eu tinha o hábito de desenhar à noite e mantinha próximo à minha cama uma escrivaninha com papéis e lápis de desenho para maior conforto nas madrugadas de inverno. Após me orientar, reconhecendo a tênue luz do alvorecer projetada no teto pelas frestas das venezianas, levantei e porque tinha alguma prática, esbocei com rapidez as formas do que ainda lembrava, e mais tarde as corrigi e completei. 

Hoje eu não ousaria revirar papéis dessa época. Seja por reconhecer minhas limitações artísticas, seja por aversão ao sobrenatural. Por diversas vezes recuei diante da velha pasta de couro com escaninhos. Não fosse o compromisso assumido na Luz do Céu[v], não reuniria coragem para revolver essas reminiscências e enviar à Viviane seu desenho. Contudo, para cumprir fielmente minha contrapartida no acordo, enfim remeti por meio dos correios o esforçado rascunho.

Meses depois recebi de volta o envelope. O hospital para o qual eu havia endereçado a carta não possuía em seus quadros ninguém que correspondesse ao destinatário. Supondo ter cometido algum engano, busquei me informar melhor sobre a enfermeira Viviane, de quem eu nunca mais havia ouvido falar, sequer no grupo. Sobre ela eu nada encontrei. Contudo, ao aprofundar a busca em arquivos de jornais, me chamou atenção a lacônica e triste nota sobre o caso de uma chefe de enfermagem, que anos atrás saltara do alto de um prédio após ingerir certa quantidade de medicamentos controlados, por ter sido apanhada em investigações sobre sua conduta profissional. E compreendi a magia do Alpendre.

Ilustração representando o Túnel de Luz em que creem os espiritualistas.

Notas

[i]De acordo com pesquisas realizadas pelo místico cearense José Roberto Bezerra Mariano, autor do Tarô de Brasília, O Caminho dos Cristais.

[ii]Extraído do Roteiro Místico Para o Centro do Mundo, Parte I, pg 56.

[iii]Inicialmente na qualidade de digressão filosófica, a seguir enquanto hipótese pseudocientífica e, afinal, esgotados todos os argumentos, como dogma ideológico.

[iv]Vide direitos conexos do autor.

[v]Na consciência de si.

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