“E os ossos aí estão em pedras virados; a carne que os cobria deu terra negra; os cabelos são os matos que bebem o sangue a nós servido em cascatinhas e vertentes; os lugares ocados são os orifícios do seu corpo: boca, olhos, nariz… As veias deram em ferro, e os nervos viraram em ouro – são os veeiros amarelos que se entranham por aí abaixo, adentro da crosta, tal e qual os nervos estão entranhados na carnadura humana. Mas o que governa tudo, que não se sabe o que é, é a alma; a que não morreu. É a Mãe do Ouro, porque ela, que não entrou no castigo, é quem defende os ofendidos, os bateeiros da fortuna, para que no Dia do Perdão cada um ache o que seu é…”
“E porque aí está, quando troveja tantos raios caem sobre certos cerros e tanto ventarrão esbarra em assovio pelas pedras. É a Mãe do Ouro em socorro das almas. Às vezes rebenta num cerro destes com estrondo grande; se é de noite, no fogo que se vê sair vai a cuidadeira de mudança para outro; se é de dia, é sempre no pino do meio-dia, e na luz do sol que encandeia os olhos, apenas sente-se o rumo que ela toma, só o rumo, mas não o lugar em que vai fazer nova morada.” – da obra de Câmara Cascudo, a Mãe do Ouro.
De acordo com os estudos de Câmara Cascudo, a Mãe do Ouro é indicação certa de veios de ouro, madrinha dos veeiros, padroeira dos filões do Centro Oeste. Surge como fogaréu ou bólido. Os relâmpagos indicam a sua direção e os trovões revelam sua cólera. Segundo o historiador Manoel Ambrósio “quando uma dessas bagas coruscantes tomba d’além, ouve-se ainda um frêmito ingênuo que a civilização não pode extinguir – É ela! É ela! A Serpente-Mãe de ouro encantado; a cobra de cristas de fogo afundando-se nas solidões da montanha.”
Num entardecer já perdido, a meio caminho do Grande Monte Zen, a Mãe do Ouro. Agora nada posso afirmar, só informo: não mais naquele, mas em outro lugar.
O Grande Monte Zen
No verão do Centro-Oeste o cerrado se reveste de uma coloração verde dourada, com nuances que vão do esmeralda ao verde profundo e deste ao sépia, numa sinfonia de semitons encantadores. Um convite às caminhadas e à prática da fotografia, meu passatempo predileto nos anos de peregrinação pelos tabuleiros das chapadas. É também a época das tormentas inesperadas, das enxurradas repentinas, das trombas d’água.
Naquele sábado João, Rosa (Rosa Maria Jacques, célebre vidente e paranormal brasileira) e eu partimos desde o Recanto da Divina Misericórdia, por cerca de uns 5 mil metros, descendo pela encosta mais setentrional da Chapada da Contagem, no Distrito Federal, até alcançar o primeiro sítio de descanso na difícil Travessia do Grande Monte Zen. Uma trilha inclinada de cerca de quinhentos metros, que depois sobe um mesmo tanto, até alcançar uma elevação de acesso íngreme para, a seguir, despenhar-se num desfiladeiro profundo. No alto do Monte encontramos um pequeno bosque e no centro vestígios de uma fogueira, formando um abrigo para a observação de movimentos no orbe celeste.
Lugar de meditação e culto de uma certa seita esotérica local, o Grande Monte Zen se diferencia do Pequeno Monte Zen por ser um ponto afastado e pouco frequentado. Nosso objetivo era passar a noite no abrigo para registrar um fenômeno antevisto pela vidente. Contudo, da equipe de pesquisadores inicialmente constituída para tal fim, apenas nós prosseguimos. Na última hora os outros haviam desistido, pois desde o princípio Rosa nos alertara de que a vigília seria cheia de surpresas, e que nos preparássemos com o máximo cuidado.
Partimos por volta das duas horas da tarde, fazia calor e escolhemos descer pela trilha que nos pareceu menos perigosa. Ao longe uma frente fria avançava sobre o Morro Rodeador, no município de Brazlândia, de modo que na direção 260º Oeste uma parede cinzenta de gelo atmosférico cobria todo o horizonte.
Vencidos os duros obstáculos da etapa seguinte de subida, paramos cerca das 16hs num rebaixo próximo ao topo do Grande Monte Zen, aguardando a tempestade. Calculamos que as primeiras rajadas chegariam entre as sete e oito horas da noite, mas fomos surpreendidos pela chuva. Desde 70º Leste, no rumo da cidade de Sobradinho, uma frente intensa em precipitação vinha veloz na direção do centro da borrasca, emitindo relâmpagos azuis.
Ao entardecer nos abrigamos longe das árvores, apreciando não sem temor mitológico o espetáculo de raios sobre o dorso da chapada. Devoramos às pressas o jantar constituído de espaguete e atum enlatado, vigiando com cuidado a tormenta. Ainda comíamos quando os primeiros pingos grossos e frios começaram a cair. Depois, do interior da barraca admirei com assombro os contornos do bosque serem revelados pro relâmpagos no alto da elevação. Por fim, uma extensa nuvem negra cobriu a Terra e por mais de cinco horas os deuses nos castigaram com impiedosa ira.
À Hora Grande o vendaval se dissipou e lentamente a chuva diminuiu. A uma da manhã havia estrelas e luar sobre o Grande Monte Zen no olho da tormenta. Saímos para a rua e eu caminhei, ainda tonto e oprimido, até os limites do acampamento, contemplando o verdor viçoso do vale uns 60 metros abaixo. Uma névoa azulada filtrava o pálido luar do verão cerratense.
Foi então que eu os vi. Esguios e lânguidos como raízes de orquídeas, esgueirando-se lá embaixo no desfiladeiro, e sem fazer barulho. Eventualmente serpenteando seus pescoços de cobras e farejando-nos com suas línguas bífidas. A seguir vieram os espectros. Rotos em seus gibões de couro, utensílios de lide, armas enferrujadas e farrapos; os esqueletos descarnados dos mineradores, meio invisíveis mas suficientemente reais para se perceber toda a solidão dos que vagam pelo mundo sem sepultura. Encenavam uma vez mais a rotina de séculos do instante final da morte: capitão de mato, escravos bateadores, índios criados. Um estalo de pistola e toda a companhia se agitou; trocavam golpes de adaga e facão, esganavam-se, esmigalhavam-se as cabeças com pedras e bordunas. Então, uma luz esbranquiçada, bela e espectral se ergueu na mata ao redor, primeiro cercando-os como uma neblina e depois envolvendo-os num abraço de serpente, e tudo se dissipou com a volta da chuva.
Em seguida, uma nova frente fria desabou sobre nós vinda de sudoeste com redobrado vigor. Mal tivemos tempo de nos recolhermos e uma segunda bateria de descargas elétricas irrompeu. A uns cem passos de onde estávamos um relâmpago estalou com o som de uma moeda arremessada contra uma vidraça. De repente era dia claro. Pela cor azulada do clarão deduzi que despejava altíssima amperagem, e com o estrondo de uma catástrofe ribombou no interior da nuvem. Eu sufocava dentro da minúscula tenda. Rosa quis sair para a rua. João a impediu. Impelido pela ansiedade de não saber onde seria lançado o próximo dardo de energia, com rapidez vesti um impermeável, luvas e botas com solado de borracha e saí para a tempestade.
O vento curvava a vegetação no cume do Monte e um cheiro de madeira queimada incensava o lugar. Por prudência me afastei das árvores, escolhendo um degrau logo à saída do acampamento. Mais adiante uma nova descarga, e outra árvore se estilhaçou com estrépito. De onde estava eu via o vale encoberto por uma cortina d’água e sobre a cabeça tinha o grande teto de gelo, escuro e sinistro como o ventre de uma embarcação fantasma. Clarões alaranjados se alternavam em seu interior, lembrando disparos de canhões. Me defendi como pude da chuva, que mais se parecia com rajadas de setas atingindo as minhas costas.
Então imaginei que em certos lugares recônditos, quando o clima anuncia a intempérie ciclópica, os Antigos Veneráveis retornam do abismo atraídos pela esperança de voltar ao seu mundo perdido. Aí nesse umbral encontram as almas dos que se entregaram à vertigem do ouro. Os aliciam, e porque estes não tem consciência da condição errante em que se encontram, os confundem e os obrigam a servi-los.
Não mais os vi naquela noite. Pouco antes da aurora me cobri com uma lona, deixando à mão uma lâmina afiada e cuidei de não adormecer. Pela manhã, aproveitando a estiagem levantamos acampamento ordeira e silenciosamente. Antes do meio-dia havíamos retornado ao Recanto da Divina Misericórdia.